Thursday, March 09, 2006

Do Velho Oeste ao paraíso

Pesquisa inédita do Ipea revela quais são as cidades mais violentas do país e onde os brasileiros ainda podem viver com segurança
ISABEL CLEMENTE COM RAFAEL PEREIRA E RICARDO MENDONÇA

Viver num lugar tranqüilo, onde se sai à noite sem medo, as crianças brincam na rua e podem ir à escola de ônibus, é o sonho de toda família de cidade grande. Refúgios assim ainda existem no Brasil. Uma pesquisa inédita feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que ÉPOCA divulga com exclusividade, mapeou o país à procura das cidades mais seguras e também das mais violentas. Cruzando dados oficiais, os pesquisadores criaram um índice que mede o risco de uma pessoa ser assassinada nos municípios com mais de 300 mil habitantes. Maringá, no rico noroeste do Paraná, lidera o ranking da tranqüilidade. Serra, nos arredores de Vitória, é a campeã da violência.

Maringá e Serra surgiram no cenário nacional, na segunda metade do século passado, como terras de oportunidade. A população de ambas as cidades se equivale, mas seus perfis tão opostos traduzem com perfeição os contrastes nacionais. Serra é o expoente de um grupo de cidades que circundam as capitais e, ao longo das últimas décadas, tornaram-se as áreas de maior risco do país. Lá, segundo a estimativa do Ipea, de cada 100 mil habitantes 97 têm chance estatística de ser assassinados em um ano. Maringá, ao contrário, parece um pedaço do paraíso, quando comparada à maior parte das cidades brasileiras. Enquanto a taxa de risco média no país é de 35,52 pessoas assassinadas num grupo de 100 mil habitantes, em Maringá essa relação cai para 7,94 por 100 mil. Como a cidade tem pouco mais de 300 mil moradores, o índice mostra que, a cada ano, 24 deles correm o risco de ser vítimas de homicídio. Na chacina de Vigário Geral, ocorrida em 1993, no Rio de Janeiro, foram mortas 21 pessoas numa noite.

Para construir o índice que mede o risco de assassinatos, os pesquisadores do Ipea trabalharam com dados do Censo 2000 do IBGE e com os últimos registros de óbitos do Ministério da Saúde para verificar se a vulnerabilidade social explicava as altas taxas de assassinato. Em 95% dos casos, a resposta foi sim. Padecem sob as piores taxas de risco as cidades mais desiguais, com mais crianças fora da escola, mais mães adolescentes e onde as populações têm as piores condições de habitação. ''As pessoas tendem a procurar um culpado, polícia, renda ou desemprego, mas há um processo socioeconômico alimentando essa espiral'', afirma o economista Daniel Cerqueira, autor do estudo ao lado de Waldir Lobão e Alexandre Carvalho. A taxa de risco medida pelo Ipea se aproxima do número de assassinatos registrados, embora não seja a mesma coisa. Para reduzi-la, os pesquisadores do Ipea sugerem a concentração dos investimentos nas seis maiores regiões metropolitanas do país. Só isso já faria a taxa nacional de homicídios cair 14%.

A façanha de Maringá, a 428 quilômetros de Curitiba, tem explicações concretas. Ela ocupa o 67o lugar no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e ostenta índices de escolaridade e renda maiores que a média brasileira. De acordo com a prefeitura, 100% das crianças de 7 a 14 anos estão na escola. Nos bancos universitários, há cerca de 30 mil alunos. ''Os alunos já saem da universidade empregados'', diz o historiador Angelo Priori, da Universidade Estadual de Maringá (UEM). ''Só os setores de confecção, vestuário e metal-mecânico têm 4 mil vagas abertas'', conta o prefeito Silvio Barros (PP).

Ali todo mundo faz sua parte. Desde que foi criada, em 1947, Maringá segue um padrão rígido de planejamento. A prefeitura não autoriza construções em locais sem infra-estrutura completa, o que inibe a formação de favelas. Ao menor sinal de um aglomerado, a população denuncia e a prefeitura age. A sociedade civil, por sua vez, cobra o tempo todo. Semanalmente empresários se reúnem para discutir as carências de Maringá, procurando definir propostas para encaminhar ao poder público. Não por acaso, o primeiro Conselho Comunitário de Segurança do país foi criado em Maringá. Tanto nas áreas nobres como na periferia, é comum ver crianças ir desacompanhadas à escola. Ter uma vida materialmente confortável não implica riscos maiores. O empresário José Carlos Barbosa, por exemplo, vive entre Maringá e Campo Grande, Mato Grosso do Sul, onde tem um shopping center, mas em casa ninguém se assusta quando ele está fora. As crianças, de 10 e 8 anos, brincam à noite na rua e só não vão à escola sozinhas porque a mãe tem medo de uma avenida movimentada. ''Nunca ouvi falar de crimes violentos por aqui'', diz a professora Carla Cristiani Greghi. ''Só mudaria de Maringá se fosse para os EUA.''

Quando a pesquisa do Ipea considera somente as capitais, caem outros mitos. Florianópolis, paradigma de qualidade de vida para quem vive entre Rio de Janeiro e São Paulo, não é a mais tranqüila do país. Está em quinto lugar. A primeira do ranking é Natal, com taxa de risco de 18,59 homicídios por 100 mil habitantes. A seu favor, a capital do Rio Grande do Norte tem geografia e demografia peculiares. É 100% urbana e combina uma população relativamente pequena, 745 mil habitantes, com o segundo menor território do país na comparação entre capitais - apenas 170 quilômetros quadrados. Essa mistura facilita o investimento em infra-estrutura e também o patrulhamento policial. Entre as políticas de segurança bem-sucedidas de Natal está a parceria da polícia com cerca de 450 bugueiros que, em troca de cursos de direção defensiva, salvamento aquático e prevenção de acidentes, prestam informações constantes para a polícia sobre qualquer atitude que julguem suspeita. Uma espécie de tolerância zero potiguar. Uma tartaruga morta numa praia, por exemplo, pode ser indício de crime ambiental. Um boato de vingança ouvido num bar da periferia pode dar início a uma investigação maior. Ainda assim, a criminalidade na cidade começa a dar sinais consistentes de crescimento. Em números absolutos, os homicídios saltaram de 74 em 2000 para 139 em 2003. O prefeito Carlos Eduardo Alves (PSB) acredita que isso é resultado do forte processo de migração enfrentado pela cidade, principalmente a partir dos anos 90, e do grande número de turistas que chegam ao município. ''Natal já recebe 1,5 milhão de turistas por ano. E desde 1996 mais de 100 mil pessoas vieram morar aqui. É evidente que isso acaba tendo influência negativa na segurança'', diz.

Em São Paulo, no Rio e em Belo Horizonte, a chance, num ano, é que de 47 a 48 pessoas sejam mortas por grupo de 100 mil habitantes. É como se, a cada vez que o Maracanã superlotasse, 50 pessoas fossem assassinadas lá dentro.

A capital mais violenta do Brasil é Recife, com risco de morte de 66,38 pessoas por 100 mil habitantes. O Estado inteiro não está em boa situação: em Pernambuco, 11 pessoas são assassinadas todos os dias. Em Jaboatão dos Guararapes, vizinha à capital, a taxa de risco é ainda mais elevada: 88,35. E em Olinda, Patrimônio Cultural da Humanidade, o índice já bate a incrível marca de 95,29. ''A vítima preferencial dessa estatística é o jovem de 15 a 24 anos. É preciso colocar esse assunto na agenda política urgentemente, pois qualquer medida vai demorar a apresentar resultados'', diz o coordenador do escritório da Unesco no Recife, Julio Jacobo.

Em Serra, no Espírito Santo, líder entre as cidades mais violentas, só nos dois primeiros meses de 2005 foram registradas 63 mortes violentas - mais de uma por dia. Sem bairros de classe média, a cidade cresceu desordenadamente. Em 1960, era um pacato município rural de 9 mil habitantes. Com a chegada da Companhia Siderúrgica Tubarão, em 1976, começou o inchaço: em dez anos, a população pulou para 200 mil, mas os serviços básicos não acompanharam. Serra tem quase 400 mil habitantes, mais gente que Vitória, a capital. D.F., de 13 anos, morador de Serra, é um típico fruto desse ambiente perverso. Do pai, um ''matador'' morto por policiais, herdou o nome e a vocação para o crime. Há dois anos, foi preso pela primeira vez. "Um dia perco a cabeça e mato o cara que me colocou lá", ameaça. "É só chegar na boca-de-fumo que arrumo a arma."



Para ter uma idéia do que significa esse índice de criminalidade no Espírito Santo, compare-se com Buenos Aires, onde vivem cerca de 3 milhões de habitantes. A capital argentina registrou 9,9 homicídios por 100 mil habitantes em 2003, dois anos depois do desastre econômico que deixou quase metade da população abaixo da linha de pobreza. Bogotá, capital da Colômbia, por muito tempo tachada como um dos lugares mais perigosos da América Latina por causa da ação da guerrilha e dos narcotraficantes, registrou nos últimos anos taxas de 20 mortos por 100 mil habitantes - essa relação já foi de 80 por 100 mil, ainda assim inferior aos números das quatro cidades brasileiras mais violentas.

"Mata-se com muita facilidade no Brasil. Estamos falando de uma hipercriminalidade. As taxas são absurdas e têm a ver, de um lado, com a vulnerabilidade socioeconômica das famílias e, de outro, com a impunidade'', diz o economista Daniel Cerqueira, um dos autores do estudo. A violência sem controle no Espírito Santo, estimulada nos últimos anos pela atuação de grupos de extermínio comandados muitas vezes por autoridades como o ex-deputado José Carlos Gratz, levou os governos federal e estadual e a prefeitura das quatro cidades mais perigosas do Estado (Vitória, Vila Velha, Serra e Cariacica) a criar o Consórcio Integrado de Combate à Violência. A idéia é agir nas causas da violência com ações sociais. ''Polícia sozinha não resolve o problema", diz o secretário de Segurança Pública do Espírito Santo, Rodney Rocha Miranda.





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